Tema foi tratado durante curso “Noções introdutórias sobre Justiça Sistêmica e Direito Sistêmico”, nos dias 6 e 7 de agosto, em São Paulo
O curso “Noções introdutórias sobre Justiça Sistêmica e Direito Sistêmico”, realizado nos dias 6 e 7 de agosto, na Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região (Emag), tratou de alguns princípios que formam a filosofia sistêmica. Com aulas expositivas e exercícios práticos, foram apresentados, entre outros, os conceitos de pertencimento, hierarquia e equilíbrio, leis naturais da sobrevivência, que podem ser aplicadas nas famílias, escolas, empresas, a fim de estabelecer harmonia nas relações e fazer os objetivos fluírem.
Boa parte dos conflitos nas agremiações humanas aparece toda vez em que essas leis ou princípios são desrespeitados, quando cada um se equivoca sobre a posição que ocupa dentro de um sistema, seja ele qual for, sempre que alguém não reconhece que pertence ao grupo no qual está atuando, ou quando o dar e o receber se tornam díspares, comprometendo o equilíbrio do conjunto.
O professor Décio Fábio de Oliveira Júnior, médico responsável por introduzir as noções básicas sobre justiça sistêmica, abriu o curso. Explicou que não conseguia lidar com seu filho de três anos e descobriu o motivo ao entrar em contato com a filosofia sistêmica. Analisando seu próprio sistema familiar, por meio de uma técnica denominada constelação familiar, percebeu que ele mesmo, em diversas ocasiões, não conseguia respeitar seu próprio pai. A partir do momento em que decidiu rever a figura do pai, tornando-se disposto a se reconciliar com ele, os problemas com o filho pequeno desapareceram. O palestrante se deu conta de que estava violando o princípio da hierarquia, isto é, condenando a figura do pai, em lugar de respeitar a sua história, que o precedia no sistema familiar.
O especialista explicou que, como seres humanos, temos uma vantagem competitiva: a possibilidade de coesão, de cooperação de altíssimo nível. Para as sociedades primitivas, tal trunfo era uma questão de vida ou de morte. Sem a coesão grupal, não era possível sobreviver. De acordo com a filosofia sistêmica, esse ainda é um comportamento instintivo do ser humano. Está relacionado com pertencimento, ou seja, o senso de fazer parte de um grupo.
O segundo fundamento é o da hierarquia, porém não num sentido autoritário do termo, mas como uma aliança que garante ação coordenada, em que existe uma liderança clara. Nas sociedades primitivas, o mais antigo era o chefe porque conhecia variadas estratégias de sobrevivência. Quando alguém questionava a liderança do mais velho, ameaçava a vida do grupo.
O terceiro princípio diz respeito ao mérito. As pessoas não colocam o melhor de si em prol do grupo se a melhor recompensa não for para quem investiu mais. Trata-se do equilíbrio entre o dar e o receber.
Esses três princípios compõem, na visão sistêmica, uma “lei natural”, baseada na ancestralidade, que atua sobre todos nós de maneira instintiva. Cada indivíduo vai agir no mundo externo de acordo com as regras que aprendeu em seu sistema familiar. Nesse ponto reside o risco de avaliar alguém que vem de um sistema familiar diferente. Nossos pensamentos estão em conexão com nossas raízes sistêmicas, com a matriz de relacionamento de nosso sistema familiar. É muito comum nos comportarmos repetindo padrões de maneira inconsciente. Convém estarmos atentos, pois fazer algo inconscientemente não nos poupa das consequências negativas de nossos atos.
Mesmo o comportamento negativo de uma pessoa, como por exemplo uma agressão, pode acontecer por ela estar validando a conexão amorosa com seu próprio sistema familiar. “Difícil é sentenciar sem julgar moralmente uma pessoa”, declarou o professor. Ele afirma que o objetivo da filosofia sistêmica é ajudar alguém a encontrar uma postura que resolva o conflito.
A título de ilustração ele relatou um caso em que uma pessoa bateu às portas da Justiça do Trabalho como empregado e, mesmo comprovadamente já tendo recebido as verbas indenizatórias pela demissão que sofreu, insistia em exigir “seus direitos”. Diante daquela situação, a juíza encarregada do caso sugeriu em audiência que a empresa publicasse uma nota em um jornal local dizendo quão bons haviam sido os serviços do empregado durante o tempo em que foi funcionário da empresa reclamada. Só assim ele se sentiu reparado e aceitou o desfecho da causa, ou seja, o empregado procurou o Judiciário para tentar compensar-se materialmente de uma perda emocional, do sentimento de desvalorização que experimentou ao perder o emprego. E a juíza, dotada de um olhar sistêmico, pôde colocar fim a uma contenda que de outra forma poderia levar anos movimentando a máquina judiciária.
No segundo dia de curso, Marcos Antônio Ferreira de Castro, analista judiciário que trabalha no Juizado Especial Federal de Botucatu, pós-graduado em Direito Sistêmico, relatou como Bert Hellinger, elaborador das leis sistêmicas e da constelação familiar, também conhecida como escultura familiar, desenvolveu os princípios sistêmicos. Hellinger foi missionário na África do Sul, durante o período do apartheid, época em que teve oportunidade de observar as dinâmicas dos Zulus, em cuja estrutura familiar existiam muitas repetições de comportamento. Ainda jovem, Hellinger fazia parte de uma organização católica que não estava alinhada com o nacional-socialismo, razão porque havia sido declarado pelos nazistas como potencial inimigo do povo. Ao longo de sua vida, no entanto, foi indicado ao Nobel da Paz por sua atuação com a constelação familiar.
O palestrante falou sobre as possibilidades de aplicação da filosofia sistêmica na vida familiar, com demonstrações práticas, para que os participantes do curso pudessem vivenciar como ela funciona, inclusive com exemplos e simulações dentro da Justiça Federal. Relatou que no JEF –Botucatu até a disposição das mesas dos funcionários, respeitando-se a ordem de chegada no local de trabalho, influiu positivamente na conduta individual de cada um e no relacionamento grupal. Ele frisou que a ordem de chegada não está diretamente relacionada à competência de um servidor, mas sim com o princípio da hierarquia dentro do grupo de trabalho, que também é um sistema, garantindo uma ação mais bem coordenada.
Marcos Ferreira forneceu ainda um exemplo de aplicação eficaz dos princípios sistêmicos. Relatou o caso de uma segurada do INSS, que pleiteava um benefício em virtude de uma doença. Ela estava sofrendo de depressão pela morte da mãe. Sem ânimo para fazer mais nada, ela havia deixado de exercer até a sua função profissional, que era a de fazer bolos. A segurada compareceu à audiência acompanhada de sua filha e foi submetida, por alguém que conhecia a visão sistêmica, a um exercício de olhar nos olhos da filha e dizer “eu fico [na vida]”. Seu processo ainda está aberto, seu benefício ainda não foi concedido, mas, depois daquele momento, chegou ao JEF a notícia de que ela melhorou muito da depressão e tinha inclusive retomado o trabalho.
O palestrante observou que “estamos o tempo todo trabalhando com a vida no Poder Judiciário”. Em sua experiência como aplicador das técnicas sistêmicas e servidor do Judiciário, assinalou que no âmbito da justiça estadual, pelos relatos do Juiz de Direito Sami Storch, quando pessoas participavam de workshops de constelação familiar antes de serem submetidas à conciliação, os índices de acordo entre autor e réu aumentavam, tendo chegado, em alguns momentos, a 100%.
A juíza federal Monique Marchioli Leite, Coordenadora das Turmas Recursais de Mato Grosso do Sul, presidente da Associação dos Juízes Federais de Mato Grosso do Sul (AJUFEMS) e também diretora de Prerrogativas da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), formada na filosofia sistêmica, também aplicou vivências aos participantes do curso para demonstrar os princípios.
Após um exercício prático, os participantes puderam constatar que os conflitos acontecem e a carga se torna mais pesada quando estamos fora do nosso lugar no sistema. Isso é comum em diversas instituições, inclusive no Poder Judiciário. Muitas vezes, o juiz quer fazer o papel de promotor ou de advogado da parte, assim como diretores e subordinados de vez em quando trocam de papel, inconscientemente.
“Como é possível a um chefe administrar sendo mais novo?”, indagou a magistrada, para exemplificar. A própria filosofia sistêmica aponta o caminho: “Honrar os administradores que vieram antes, pedir a cooperação dos colegas, prestigiar, entre os funcionários, quem veio primeiro”. Isso porque aquele que veio antes acumulou experiências e estratégias que podem ser compartilhadas com os mais novos no intuito de garantir a sobrevivência do grupo. Trata-se de princípios incorporados inclusive à nossa Constituição Federal: respeito à antiguidade, no caso de promoção, por exemplo.
Como trazer os princípios sistêmicos para o cotidiano da Justiça? “É importante superar a visão individual e mudar o olhar para uma forma sistêmica”, sugere a magistrada.
Para ilustrar o que seria adotar essa postura, ela relatou um caso jurisdicional em que foi possível solucionar a questão pelos princípios sistêmicos. Era uma ação em que os Correios tinham contrato com uma empresa para prestação do serviço de mala direta. Em certo mês, os Correios deixaram de prestar o serviço e a empresa deixou de pagá-los por isso. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) entrou, então, com uma ação na Justiça Federal cobrando a sua remuneração, alegando que o contrato permitia a ela ser remunerada mesmo que deixasse de prestar o serviço. A juíza percebeu aí um desequilíbrio entre o dar e o receber, violando um dos princípios das leis sistêmicas. No entanto, procurou no ordenamento jurídico um princípio que pudesse embasar legalmente a sua decisão. A magistrada encontrou o princípio do enriquecimento sem causa, um ilícito civil, pois não seria justo alguém receber por um serviço que não prestou. Assim, deu-se um desfecho à causa, em conformidade com uma visão sistêmica.
Por fim, a Dra Monique Marchioli Leite convidou os participantes a um exercício sistêmico para que todos, representando os cidadãos, dissessem, o que sentiam em relação ao Poder Judiciário. Os representantes dos cidadãos foram quase que unânimes em expressar sentimentos e sensações negativas à instituição. O participante que representava o Poder Judiciário ao ouvir as manifestações relatou ter se sentido muito cobrado e desacreditado quando ouvia os participantes que representavam a sociedade. No segundo momento do exercício, os representantes dos cidadãos foram convidados a concordarem com Poder Judiciário do jeito que ele é, sem julgamento. Nesse momento, o representante do Poder Judiciário sentiu-se fortalecido e com mais disposição para agir. O exercício deixou claro que a nossa postura frente ao Poder Judiciário e às nossas relações no ambiente de trabalho, de agir sem julgamento, geram efeitos que influenciam diretamente no resultado de nosso trabalho. Isso porque, o Poder Judiciário é um sistema do qual todos fazemos parte – pertencimento. Logo, de alguma maneira, somos todos responsáveis pelo que ele é.
Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região (Emag)
Com informações da assessoria de imprensa do TRF3.
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