Colunista da MH celebra a lei que obriga o juiz a fixar um valor mínimo para reparação de danos ao proferir uma sentença
Até pouco tempo atrás, mais especificamente até o ano de 2008, a única finalidade do processo penal era verificar se a acusação, materializada numa peça processual chamada denúncia (na qual se imputa a alguém a prática de um crime), era procedente. Para tal verificação, cabia ao magistrado praticar uma sucessão preordenada de atos processuais (chamada de procedimento) para, ao final, decidir se a acusação de fato é verdadeira, ou seja, se aquele sujeito que está sendo acusado da prática do crime descrito na denúncia realmente o cometeu. Em sendo constatado que houve o cometimento do crime, cabia então ao magistrado aplicar a lei penal, responsabilizando criminalmente o acusado através da aplicação da respectiva pena prevista para o crime em questão.
Assim, muito embora fosse (e ainda seja) bastante comum que através da prática de crimes ocorressem danos/prejuízos a determinadas pessoas (chamadas de vítima ou ofendido), cabia a estas entrar com uma ação no juízo cível para obter a reparação do dano.
Por exemplo, se um cidadão tivesse sua moto furtada e nunca mais conseguisse obter a moto de volta, mesmo que o respectivo autor do furto fosse condenado criminalmente, caberia a ele entrar com uma ação no juízo cível contra o autor do crime para que este fosse obrigado a indenizá-lo, pagando o valor equivalente à moto subtraída como medida de reparação do dano causado pelo crime.
Com a lei nº 11.719/2008, o Código de Processo Penal passou a prever que o juiz, ao proferir uma sentença condenatória, deve fixar um valor mínimo para reparação dos danos causados pelo crime, considerando os prejuízos sofridos pela vítima/ofendido (art. 387, IV do CPP). Com isso, o processo penal passou a ter como finalidade, também, a fixação de um valor mínimo de reparação dos danos causados pelo crime, desobrigando a vítima (que já sofreu o dissabor de ter sofrido um crime) de ter que entrar com um processo cível contra o autor do crime caso queira obter a reparação do dano.
Geralmente, os danos causados pelo crime são prejuízos materiais, isto é, prejuízos que representam danos patrimoniais. No furto, o prejuízo é o valor equivalente ao objeto subtraído. Num acidente de trânsito no qual haja lesões corporais à vítima e danos no veículo (farol quebrado, por exemplo), o prejuízo equivale ao custo que a vítima teve com as despesas para curar a lesão corporal sofrida (medicamentos etc.), mais o valor do farol.
Em suma, a reparação do dano consistirá no pagamento, à vítima, pelo autor do crime, do valor equivalente ao prejuízo sofrido. Ainda no exemplo acima, caso a vítima, por conta do acidente que sofreu, ficasse impossibilitada de continuar trabalhando e assim recebendo por isso, a reparação do dano deveria abranger, ainda, o valor equivalente ao que a vítima recebia quando estava trabalhando.
Mas os danos causados pelo crime não são apenas patrimoniais. Devido à própria natureza das práticas criminosas, é comum que as pessoas sofram danos físicos ou até mesmo mentais, experimentando intenso sofrimento emocional. Num acidente de trânsito no qual a vítima tenha que amputar uma perna, por exemplo, é evidente o dano moral sofrido. Num sequestro no qual a vítima é mantida em cativeiro por semanas, num ambiente escuro, com pouca alimentação, o sofrimento emocional experimentado será suficiente para se ter como caracterizado dano moral, também suscetível de reparação.
Além disso, as pessoas jurídicas também podem ser vítimas da prática de crimes e da mesma forma possuem direito à reparação dos danos por eles causados.
Há crimes, porém, que não causam danos/prejuízos a pessoas determinadas, como o tráfico de drogas. O sujeito que é preso por possuir 1 quilo de cocaína destinado à venda não pode ser compelido a reparar o dano, pois este não é mensurável neste caso.
De todo modo, atualmente tem-se, como regra, que, havendo dano mensurável e vítima específica, deve o juiz criminal, além de aplicar a pena prevista para o crime cometido pelo réu, fixar um valor mínimo de reparação do dano causado pelo crime.
Embora essa obrigação tenha representado um avanço, é preciso ter em mente que a finalidade principal do processo penal continua sendo a de apurar se a acusação procede, ou seja, se houve a prática de um crime e quem foi seu autor, aplicando-se como consequência a respectiva pena prevista para o crime cometido.
Não é desejável, assim, que o processo penal tenha seu desfecho demasiadamente retardado por conta da realização de perícias complexas e demoradas para que se consiga estabelecer o valor correto da reparação do dano. Tendo sido praticada a sucessão dos atos processuais previstos no Código de Processo Penal (recebimento da denúncia, oitiva de testemunhas, interrogatório do acusado, demais diligências etc.), deve o juiz prolatar a sentença, mesmo que não tenha sido possível estabelecer o valor correto da reparação dos danos causados pelo crime.
Caso o processo penal ficasse à espera da realização de perícias complexas para apurar o dano causado pelo crime, haveria risco, por exemplo, de acabar ocorrendo a prescrição, com a indesejável extinção da punibilidade do agente por conta do decurso do tempo.
Não foi por acaso, portanto, que o legislador estabeleceu que o juiz deve fixar um valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração penal, pois para se chegar a um valor mínimo tem-se que não é preciso efetuar inúmeras diligências ou realizar perícias de alta complexidade.
Em sendo fixado um valor mínimo, nada impede que a vítima busque cobrar a diferença entre este valor mínimo e o valor efetivamente devido no juízo cível, foro adequado para tal discussão, com possibilidade inclusive de se realizar a complexa perícia eventualmente necessária para se apurar corretamente o valor do dano causado pelo crime.
Em suma, o juiz criminal, ao fixar um valor mínimo para a reparação do dano causado pelo crime, ao mesmo tempo em que propicia amparo à vítima, não perde o foco da principal função do processo penal: efetivar a responsabilidade criminal, aplicando a respectiva pena prevista para o crime praticado.
Questões relativas ao quantum da reparação do dano causado pelo crime que ensejam muitas diligências e/ou realizações de perícias complexas, portanto, devem continuar sendo discutidas no juízo cível, sob pena de ineficiência na aplicação da lei penal e, portanto, de impunidade.