O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou na manhã desta quarta-feira (27), em sessão extraordinária, o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 842846, com repercussão geral reconhecida, que discute se o Estado tem responsabilidade civil objetiva para reparar danos causados a terceiros por tabeliães e oficiais de registro no exercício de suas funções cartoriais. O recurso foi interposto pelo Estado de Santa Catarina contra acórdão do Tribunal de Justiça local (TJ-SC) que entendeu que o Estado, na condição de delegante dos serviços notariais, responde objetivamente pela reparação de tais danos em decorrência do parágrafo 6° do artigo 37 da Constituição Federal.
O autor do recurso sustenta não ser parte legítima para responder ação de indenização por dano resultante de mau funcionamento dos serviços notariais, e que é a pessoa física do tabelião ou do oficial de registro quem deverá responder pelos prejuízos causados a terceiros no exercício da atividade notarial.
O caso concreto envolve uma ação ordinária com pedido de indenização feito por um cidadão em decorrência de erro do cartório na emissão da certidão de óbito de sua esposa. Segundo os autos, o erro na grafia do nome da falecida na certidão de óbito, ocorrido em julho de 2003, impediu o viúvo de requerer o benefício previdenciário da pensão por morte junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O TJ-SC condenou o Estado de Santa Catarina ao pagamento de um salário mínimo mensal entre 26 de julho de 2003 e 21 de junho de 2006. Tal período compreende a data do erro constante na certidão de óbito e a data da concessão do benefício após retificação do documento por via judicial, com acréscimo de juros moratórios e de atualização monetária.
Sustentações orais
Pela manhã, pronunciaram-se na tribuna o representante do Estado de Santa Catarina – que defende a responsabilização estatal apenas subsidiária, cabendo ao agente responsável pelo erro responder pelo dano – e, na condição de amici curiae (amigos da Corte), representantes da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR), do Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil (IEPTB) e do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal. As entidades notariais, por sua vez, defendem que os cartórios prestam serviços ao Estado e atuam em nome dele, e que, por se tratar de delegação de atividade, deve o Estado responder pelos danos, cabendo eventualmente ação de regresso de ressarcimento contra o delegatário em caso de comprovação de dolo ou culpa. As entidades pediram a confirmação da jurisprudência do STF no sentido de que o Estado responde diretamente pelos danos.
Votos
O relator, ministro Luiz Fux, votou no sentido de se manter a jurisprudência da Corte que considera o Estado o responsável direto para responder por danos causados a terceiros por tabeliães e oficiais de registro no exercício de suas funções, conforme disposto no artigo 37 da Constituição Federal – “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Segundo Fux, esse modelo prevê que “a vítima tem que ser indenizada por alguém em casos de responsabilidade civil”. Ele acrescentou que a jurisprudência do STF é firme no sentido da responsabilidade direta do Estado, uma vez que os tabeliães e os notários são dotados de fé pública, pois exercem função eminentemente pública dos serviços notariais.
O ministro destacou que a atividade em questão, por ser eminentemente pública, sujeita seus agentes à fiscalização estatal, conforme estabelece o artigo 236 da Constituição, que autoriza ao legislador ordinário a disciplinar a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
Em seu voto, o ministro Luiz Fux negou provimento ao recurso para manter o acórdão do TJ-SC e reconhecer que o Estado responde objetivamente pelo dano, assegurado o direito de regresso em caso de dolo ou culpa.
O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator, acrescentando que a questão não está na exclusão da responsabilidade objetiva do Estado, mas também na previsão da responsabilidade subjetiva dos notários e registradores, que embora exerçam função pública, assim como um integrante de Júri ou de um mesário eleitoral, não têm vínculos com o serviço público.
Divergência
O ministro Edson Fachin entende que é preciso definir a posição do Estado na responsabilidade civil diante de danos causados a terceiros por delegação de serviço público. Ele defendeu uma nova reflexão sobre o tema, embora o entendimento que tem prevalecido é o de que as falhas dos notários fazem incidir diretamente a responsabilidade do Estado.
O ministro citou a Lei 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), que regulamenta o artigo 236 da Constituição Federal ao dispor sobre serviços notariais e de registro, e a Lei 13.286/2016, que alterou a legislação anterior para disciplinar a responsabilidade civil de tabeliães e registradores. Nesse ponto, o ministro considera que há divergência dessa lei com a jurisprudência já firmada pelo STF, e entende ser inconstitucional, incidentalmente, o artigo 22 da Lei 13.286/2016, segundo o qual “os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso”.
No entendimento do ministro Edson Fachin, o ato notarial de registro que provoca dano a terceiro gera ao Estado responsabilidade objetiva, mas apenas subsidiária. Assim, ele votou pelo provimento parcial do recurso para acolher a tese da possibilidade de serem simultaneamente demandados na ação tanto o tabelião quanto o Estado, mas mantendo, no caso concreto, a sentença de procedência.
Já o ministro Luís Roberto Barroso adotou uma terceira via para o julgamento da matéria. Ele considera, além da regra geral sobre responsabilização do Estado, prevista no artigo 37 da Constituição Federal, a regra específica prevista no artigo 236, com relação à responsabilização subjetiva de notários e registradores.
Na avaliação do ministro, tanto a responsabilização do Estado quanto a dos tabeliães e registradores deve ser subjetiva, mas não se deve, segundo ele, transferir o ônus da prova totalmente para o demandante. Sugeriu uma reavaliação do ônus da prova, de forma a não ficar tão desigual um dissídio entre um particular e o cartório.
Quanto à jurisprudência já firmada pela Corte, o ministro Barroso questionou o entendimento de que a responsabilidade do Estado tem que ser primária, direta ou subsidiária. “Dar responsabilidade primária e objetiva em cada falha praticada pelo funcionário é condenar o Estado ao pior dos mundos”, disse, ressaltando que o Poder Público, ao mesmo tempo que não recebe os recursos provenientes dos serviços prestados pelo cartórios, é responsável por erros porque se trata de delegação de serviço público.
O ministro acompanhou o relator no caso concreto e negou provimento ao recurso em conformidade com a jurisprudência da Corte. Entretanto, para fins de repercussão geral, sugeriu que novas ações em casos semelhantes sejam ajuizadas contra o tabelião ou registrador, sendo facultado ao autor incluir o Estado no polo passivo para fins de responsabilidade civil.
AR/CR
Com informações da assessoria de imprensa do STF.
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